A s declarações de insolvência de pessoas singulares estão a aumentar. Em dois anos, duplicaram. Uma situação que revela maior conhecimento da lei e que tem permitido a muitas centenas de pessoas libertarem-se do aperto financeiro e recomeçar de novo.
É esse, aliás, o objectivo da lei: permitir um recomeço, uma segunda oportunidade a quem, de repente, se vê atolado numa dívida de 100, 200 ou 300 mil euros. Famílias muitas vezes com rendimentos da ordem dos 1 500 a dois mil euros, "agarradas" pelas instituições financeiras.
"Eu diria que 90 a 95% dos meus clientes não se endividou por maldade", garante Luís M. Martins, advogado especializado em insolvências, a braços com centenas de processos de casais normais, sem empresas ou investimentos em negócios, mas com dívidas de milhares.
Uma situação que, segundo diz, não decorre da crise, é estrutural. " Não é fácil viver neste país. Não é fácil trabalhar e ganhar como deve ser. A maior parte das pessoas ganha 500 euros, um casal ganha 1200; veja-se o preço das rendas. Como é que se pode viver"?
Além disso, as instituições financeiras deslumbram as pessoas, com a possibilidade de se obter dinheiro vivo em 48 horas. E pressionam mais do que deviam. "Tenho um cliente que foi declarado insolvente e uma instituição financeira, ao tomar conhecimento disso, mandou um telegrama a dizer: 'sabemos que está insolvente; temos a solução para si'".
Outro cliente seu, com quem o JN falou, recebeu um telefonema de uma dessas instituições e traçou um cenário o mais miserável possível sobre a sua situação financeira, "só para que a funcionária recebesse o dinheiro do inquérito". Qual não foi o seu espanto quando, dias depois, recebe uma carta a dizer: "Parabéns, o seu crédito foi aprovado!".
Tudo começa com um primeiro empréstimo para a casa e, depois, um segundo para o carro, ou, para fazer face a uma despesa de saúde, por exemplo. Até que se torna necessário recorrer a outros créditos para pagar os anteriores. Inicia-se, então, a bola de neve e o desespero. "Os primeiros 30 mil euros de crédito serão para consumo pessoal, para complementar os ordenados. Os restantes 80/ 100 mil são para pagar os primeiros", diz o advogado.
Há clientes seus que "não comem carne nem peixe há mais de um ano", tão endividados estão. E quando assim é, o melhor é apresentar-se num tribunal e pedir falência. Uma dívida de 200 mil pode ficar reduzida a 10 mil euros. O regime de insolvência de pessoas singulares permite-o, desde que sejam cumpridos alguns requisitos.
Luís Martins explica que a lei prevê duas situações: propor um plano de pagamentos ou pedir a exoneração do passivo restante. Ambas, sempre, com intervenção de um advogado e de um juiz e só quando se prova que o devedor agiu de boa fé.
No primeiro caso, o devedor propõe-se pagar um determinado montante, consoante os seus rendimentos, durante um certo período de tempo, e dividi-lo por todos os credores. Se os credores aceitarem é, então, iniciado o processo.
Findo o período estabelecido para o pagamento (quatro ou cinco anos), o devedor fica livre do restante em dívida. Caso o plano de pagamentos não seja aprovado, então o devedor deverá pedir a exoneração do passivo restante. Vai ao juiz, entrega os seus bens e, durante cinco anos, pagará "o que pode". Pode até nem pagar nada, caso se encontre desempregado.
Se o juiz aceitar, fixa um plano de pagamentos. Retira o que o agregado familiar precisa para viver e determina o montante a pagar por mês. É nomeado um administrador de insolvência, a quem o devedor entrega o dinheiro, mensalmente. Este administrador é também responsável pela "vigilância" do insolvente. Tem de confirmar que os seus rendimentos não aumentam - se aumentarem, é revisto o montante a pagar -, garantir que os pagamentos são feitos e, em caso de desemprego, verificar se se esforça por o procurar. Caso seja cumpridor, ao fim dos cinco anos fica livre da sentença e da dívida restante e pronto para recomeçar uma nova vida.
A lei está em vigor desde Setembro de 2004, mas ainda não é suficientemente conhecida. Tem como objectivo proporcionar uma nova oportunidade. Os casos de insolvência singular duplicaram em dois anos - de 370, em 2006 para 651, em 2008. O Ministério da Justiça não dispõe ainda de dados do ano passado, mas, segundo os advogados, o número de casos cresceu e continuará a crescer.
http://jn.sapo.pt/PaginaInicial/Economia/Interior.aspx?content_id=1550161
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