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02/05/2010

Somos todos hipócritas

Jürgen Kaube

A Grécia tem de dar prova de mais credibilidade, diz-se um pouco por toda a parte. Mas não é ela a única a mascarar a realidade, recorda o Frankfurter Allgemeine Zeitung. É altura de acabar com as mentiras vitais em que se baseia a nossa sociedade.

Todos os cretenses são mentirosos, dizia Epiménides de Creta. Na epístola de São Paulo a Tito, a parábola filosófica que evoca o ciclo infernal da lógica, faz-se ainda mais dura: “Um deles, seu próprio profeta, disse: Os cretenses são sempre mentirosos, bestas ruins, ventres preguiçosos”. O chamado Paradoxo de Epiménides encontra agora a sua aplicação na política. Porque todos soltam altos brados por os gregos terem mentido. Porque viviam acima dos seus meios. Porque contraíram mais dívidas do que podiam reembolsar e porque esperavam que o resto da Europa – ou mais precisamente, uma parte do resto da Europa – lhes servisse de tesoureiro. Tal como os bancos que integraram os títulos gregos nas suas carteiras, dizendo que um Estado pode certamente entrar em falência, mas não um membro da UE.

Uma atitude encorajada pelos políticos

Até esta agitação faz parte da mentira. Somos todos cretenses, para todos os efeitos, em matéria de mentira, mais do que no domínio da auto-acusação. Atenas tem de continuar a economizar, proclamam. Mas não há um único Estado europeu que não deixe a sua população no vago quanto à respectiva situação fiscal. De resto, povo nenhum deixaria de aprovar os juros baixos, os fantasmas de desagravamentos fiscais e os eufemismos sobre o reforço da dívida. Há efectivamente algum descontentamento, de vez em quando, mas não passa daí. Não há um político que, em véspera de eleições – caso da Renânia do Norte-Vestefália, neste momento –, não recorra aos truques mais ardilosos para meter os impostos debaixo do nariz dos eleitores.

Atenas deveria continuar a poupar, afirma a devedora [Angela Merkel]. Tanta gesticulação absurda para meter na ordem os gregos serve, sobretudo, para demonstrar que se tem o seu próprio orçamento completamente controlado. Controlado? Em Bruxelas, a mesma Bruxelas onde se declara hoje querer submeter a Grécia a uma vigilância sem precedentes, nunca houve vontade, durante todos estes anos, de evitar o pior. Os cretenses que aí se reúnem conhecem a situação fiscal dos portugueses, dos búlgaros, dos húngaros ou dos italianos? Dos alemães? A resposta só pode ser uma: sim, evidentemente que conhecem.

Mas quando a política pretende integrar Estados e continentes inteiros graças à prosperidade, não está posto de parte o fechar de olhos para a impossibilidade de financiar esses nobres objectivos – o conceito europeu que tem por nome “coesão”. “Retire-se a uma sociedade normal a mentira vital, e é a ordem política que se lhe retira no mesmo instante”, poderia dizer-se, parafraseando Ibsen.

Os bancos mentem e nós continuamos como se nada fosse

Entre essas mentiras vitais, citemos todos os esforços retóricos com que levamos a cabo as nossas ficções de racionalidade. Espera-se que vivamos numa sociedade de observação e vigilância permanentes, de avaliação e certificação constantes. Devemos também viver numa sociedade do saber. Porque ninguém ri quando se recorre a tais conceitos? Mesmo as catástrofes políticas mais retumbantes só são reconhecidas quando já não podem continuar a ser negadas pelo ventre mais preguiçoso.

Nesta medida, a Grécia é apenas um exemplo. Emitimos certificados que sabemos não terem outro valor senão o do papel em que são redigidos. Milhares de políticos estão constantemente dispostos a tomar o avião para ir assistir a conferências onde se procura chegar a acordos, sempre no bom caminho. Quando os bancos nos mentem e exploram, deixamos de acreditar neles durante uma fracção de segundo e depois continuamos como se nada fosse. Isto vale para as políticas, para os apresentadores de televisão, para os consultores de empresas.

Através de considerações complexas, demonstramos que as dívidas são investimentos de futuro, que a Europa é óptima, ou que o combustível, o aumento da produção automóvel, as luzes de aviso e a criação de gado subvencionada não podem ser responsáveis pelas mudanças climáticas. E a Grécia é que tem de se tornar mais credível. Tão credível como nós, como os bancos, como os gurus, como os chanceleres, como os cretenses.

http://www.presseurop.eu/pt/content/article/242051-somos-todos-hipocritas

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