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15/04/2010

Interpretar o momento (histórico) - Contributo para a transformação do mundo

Sérgio Ribeiro

Um dos trechos mais conhecidos de Marx é a sua 11.ª tese sobre Feuerbach – «Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo». Esta «tese» deveria estar sempre presente entre os que se ocupam a interpretar o mundo, a tentar perceber o que vai acontecendo, e porquê. No entanto, não menos importante é que quem tomou o partido de transformar o mundo não esqueça que, para bem o transformar, de acordo com o partido que foi tomado, há que perceber o que se passa, há que interpretar o mundo.

Confesso ter dúvidas se Marx em 1867, data da edição de O Capital (livro primeiro) repetiria, assim, tal qual, o que escrevera em 1845. Mas isto são dúvidas minhas e a esclarecer por outras paragens… Quero dizer, porém, ao começar esta reflexão, que, no momento histórico que vivemos, há que interpretar o que está a acontecer no mundo.
Uma primeira, e talvez prévia, prevenção. O momento histórico tem limites que vão muito para além dos limites dos humanos, isto é, da duração dos momentos à dimensão dos humanos.
Diria, por isso, que a compreensão do momento que vivo tem, para mim, as suas raízes lá para o fim dos anos 50. O que, para momento, haverá quem considere demasiado tempo, embora eu ache que, historicamente, pouco é, e mais se deva recuar para se chegar ao antes-que-já-é este momento que vivemos.
Para exemplificar: o que se está a passar, agora mesmo, a propósito dos submarinos e das minhocas que saltam a cada cavadela, das «arquitecturas financeiras» e correlativas «engenharias de interesses» e «artes e manhas» de corrupção, para-corrupção e quase-corrupção, a promiscuidade Estado-privados, pode encontrar-se, qual infância das tais artes, na criação da Siderurgia Nacional.
Então, constituiu-se um consórcio germano-belga, em que bancos belgas abriram crédito a empresa portuguesa, com aval do Estado, para financiar fornecedores alemães da instalação fabril no Seixal. Depois, o preço do aço seria fixado pela empresa e, se o Estado entendesse que o deveria controlar, «a bem da Nação», estaria impedido de o fazer pois a empresa lhe diria não poder pagar os juros aos bancos belgas, e estes accionariam o aval do Estado.
Ao menos… era para fabricar aço e não para meter coisas enormes a flutuar debaixo de água sem se perceber para quê, mas as ditas «artes e manhas» correlativas, decerto existentes sob formas diversas como contrapartidas e pareceres, não eram conhecidas, vasculhadas, «armas» de política e contra-política partidárias.

A internacionalização e os «aparelhos» ou «mecanismos»

Um salto. No tempo. Sem sair do momento.
Quando o processo de integração europeia capitalista enveredou pelos alargamentos e, por via destes, em mais que uma velocidade e na divisão entre Estados-membros com diferentes posições (até geográficas, continentais e insulares anglo-saxónicas) sobre o processo, o GEM (Grupo de Economia Marxista, belga) editou Contraprojecto para a Europa(1), e uma «ideia quase-nova» que dele retive foi a da noção de «mecanismo único transnacional»(2), que se desenvolvia ao tratar das inter-relações entre os estados, as grandes empresas privadas e as estruturas internacionais ou supra-nacionais.
Então com nove estados-membros, as Comunidades Europeias, e todo o sistema capitalista, estavam noutra «encruzilhada». E se da anterior se saíra com o primeiro alargamento, para as seguintes o relatório Tindemans foi documento esclarecedor e decisivo.
Brevemente: um núcleo super-integrado e uma periferia, logo com a Grécia, e Portugal e a Espanha (a juntar ao Sul da Itália, ao Norte da Inglaterra e à Irlanda, mais tarde com os escandinavos e a orla Leste a recuperar da «experiência socialista», num todo a configurar uma diversificada coroa periférica a que nem virá a faltar, talvez, a Turquia e países do Norte de África).
O que convergiria com a via do federalismo sob comando do núcleo superintegrado, para que o primeiro passo foi o das eleições directas, tímido porque em cada Estado, para um Parlamento Europeu até então emanação dos parlamentos nacionais.
Assim como convergiria, na globalidade capitalista e viragem dos anos 70 para os 80, com o liberalismo económico, sepultando keynesianismos, a financeirização e a passagem do equilíbrio da «guerra fria» para infiltração nos e absorção dos países socialistas.

Globalização ou capitalismo em fase de «aldeia-mundo»

Em leitura pessoal, dois livros do meio da década de 90 balizam a procura de perceber o momento. Histórico, repita-se.
Até por serem livros «de informação» que não se pretendem nem científicos nem rever na dita ortodoxia marxista. São eles A «Aldeia-Mundo» e o seu Castelo (ensaio contra o FMI, a OMC e o Banco Mundial), de Philippe Paraire, e O horror económico, de Viviane Forrestier(3). A que talvez se pudesse juntar livros de Gérard de Sellys, sobretudo Privé de public, que relata, jornalisticamente, o assalto privatizador ao serviço público das comunicações para aproveitamento capitalístico do «casamento» do telefone com a informática e a televisão.
No entanto, para estas reflexões e na intenção de apenas referir o que ficou retido de leituras que acompanharam o viver da realidade, apenas retenho informações que ajudavam a perceber as transformações resultantes da criação da Organização Mundial do Comércio, a juntar às «invenções» de Bretton Woods – FMI e BM –, na consolidação, sem constrangimentos a nível de Estados e sistemas, dos mecanismos e aparelhos transnacionais do capitalismo, aliás como resposta de classe ao desenvolvimento das forças produtivas.
A outro nível, superestrutural, anoto a radicalização ideológica do liberalismo, aparentemente pujante mas mergulhado a fundo nas suas contradições, privatizando o susceptível de dar lucro, e arrasando o não «útil» por não dar lucro ao lucro… E tudo a passar pela desvalorização do trabalho (vivo), pelo emprego/desemprego, pelo recurso à utilização da forma dinheiro do capital, fictícia, simbólica, especulativa, em detrimento das formas mercadoria e produtiva, como relação social que é.

O euro, o crédito… e o descrédito

Depois de Maastrich ter sido trampolim, em cujo salto se insistiu até projectar a União Económica e Monetária e a União Política numa União Europeia, nas novas e forjadas condições planetárias, o abandono da coesão económica e social e objectivo da convergência era inerência à criação da moeda única (e do Banco Central Europeu) e, depois, à aceleração para a federação política e a militarização .
A posição tomada pelo PCP nesse passo do processo, se isolada no leque partidário, encontra agora muitos «parceiros». Muito mais que a vanglória da razão a posteriori dir-se-á que os que hoje parecem falar como nós há quase década e meia então não tinham razão (ao menos técnica, «neutral»), nem agora a passaram a ter porque, se se confirma estar a acontecer o que foi previsto e prevenido, não é isso que os faz transformar o rumo das políticas. Estas são de classe, e agudizam as contradições que o funcionamento da economia capitalista engendra.
Portugal, o Estado-membro mais obediente, foi o mais prejudicado pela introdução do euro no circuito económico. Não por culpa do instrumento mas da maneira como foi criado e ao serviço de que interesses. Financeiros e transnacionais.
Porque contribuiu para o desaproveitamento de recursos (como do mar), porque serviu para «embarcar» na sobrevalorização da moeda enquanto se perdia a «arma cambial», do que derivou grande desfavor para as actividades de exportação, porque veio favorecer os países de que Portugal importava, porque serviu para beneficiar os turistas e para prejudicar o turismo, porque reforçou o mau uso dos fundos comunitários, porque trouxe (pelo BCE) o crédito fácil e barato para compensar o estímulo ao consumismo e a quebra de poder de compra dos salários até ao endividamento inultrapassável. Porque, sempre ao serviço do capital financeiro em detrimento da economia real, aqui, neste país possível, nos tornou mais e mais dependente.
Ontem, escreveu-se que assim seria (por exemplo, em Não à moeda única – um contributo(4); hoje, confirma-se que assim foi… mas esconde-se que, ontem, assim foi previsto e prevenido. Porque não pode ser reconhecido que as análises que levavam a que assim se previsse e prevenisse são as mesmas que exigem rupturas com as políticas que se quer prosseguir. Porque são estas que, apesar da agudização das contradições, servem o capital financeiro e, nesta fase do momento histórico, não descortinam força capaz de as contrariar.

O desnorte e o cerne da questão

O facto é que o desnorte é grande e, para além das contradições, a fricção inter(e intra) imperialista existe e agrava-se. Falar de situações, como a saída de alguns países do euro, que seria impensável ver encaradas (e por quem), começou a ser letra impressa ou palavra dita.
Mas a relação de forças sociais (de classe) não é estável e muito menos estagnada. As condições objectivas em que se vive, e como aqui se chegou, começam a ser tão evidentes que a manipulação da informação – que, hoje, substitui a censura – tem os seus limites. E a tomada de consciência ganha força e será determinante.
Nesta fase do momento histórico, o recurso ao dinheiro em todas as suas formas, desligadas de base material, da economia real (das coisas!), não pode anular leis como a da baixa tendencial da taxa de lucro. Porque o trabalho cristalizado é cada vez mais importante relativamente ao trabalho vivo na composição orgânica do capital produtivo.
E o cerne das questões não deixará de estar, nas condições particulares de cada fase do momento, na relação social que define o capitalismo, entre os proprietários dos meios de produção e os assalariados que são sua criação, sendo a apropriação de mais-valia o seu alimento vital.
____________
(1) – em português, na Editorial Estampa, 1982 (Du Monde Entier, 1979)

(2) – «… Trata-se, brevemente, dum conjunto sistemático, de interconexões entre as engrenagens do Estado, as para-estatais, etc., e o mundo dos negócios…»

(3) – em português, nas edições avante!, 1998 Le Temps des Cerises, 1995) e Terramar, 1997 (Fayard, 1996)

(IV) – edições avante!, 1977

http://www.avante.pt/noticia.asp?id=33198&area=19

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