Foi há trinta e seis anos. Passara pouco mais de um mês sobre o 25 de Abril quando surgiu, entre muitas outras, uma novidade: foi instituído pela primeira vez no nosso País o salário mínimo nacional.
Não era então a altura propícia, é claro, a que vozes indignadas se levantassem contra essa medida que, como claramente se entende, atentava contra a liberdade do patronato pagar aos seus empregados o que muito bem lhe apetecesse, sendo que o que mais apetecia a muitos patrões era não pagar nada. E, de facto, até então não eram poucas as vezes em que os trabalhadores se conformavam a quase nada receberem.
Uns anos antes, uma frase escrita por Fernando Namora num dos seus romances caracterizara a situação: «Um homem, quando precisa, até põe o pescoço debaixo de um serrote». Nas décadas que antecederam Abril houve em Portugal muitos e muitos milhares de homens e de mulheres, que precisavam, e por isso aceitavam trabalhar por quase nada. Essa situação de reconforto empresarial foi obviamente extinta com a implementação de um salário mínimo.
As coisas, porém, não ficaram por aqui: depois desse primeiro passo vieram nos tempos seguintes outras medidas, outros luxos, desde cuidados médicos e medicamentosos para toda a gente até pensões de reforma, ainda que modestas, mesmo para quem nunca tivera oportunidade de pagar contribuições para esse efeito. Só porque, sendo cidadãos e cidadãs, têm o direito de não serem expedidos directa e claramente para a mais negra miséria.
Chegou a coisa ao ponto de o Estado pagar algum dinheiro, ainda que pouco, a quem não tem nenhuma outra receita que lhe permita escapar aos piores aspectos da fome ou de privações equiparáveis. O que, como se sabe, o dr. Paulo Portas entende poder conduzir directamente aos prazeres da ociosidade, tal o elevado valor desses pagamentos.
É claro que esse derrame de benesses sobre a arraia-miúda nunca caiu bem em grande parte das mais distintas camadas da sociedade portuguesa, cavalheiros e cavalheiras que felizmente dispunham de situações financeiras muito desafogadas graças exactamente a uma rigorosa gestão dos custos da mão-de-obra, à regra fundamental de nunca se passar muito dinheiro para as mãos da gentalha que, ao que muitas vezes se cria, logo iria gastá-lo em vinho.
O alto exemplo dessa sabedoria era, aliás, dado pelo então senhor doutor Presidente do Conselho que mantinha a maioria da população num regime de economias que florescia nos milhares de casos de tuberculose pulmonar que eram uma espécie de ex-líbris nacional até à chegada da estreptomicina. Ora, com o pós-Abril tudo mudou.
Os salários tenderam perigosamente para deixarem de ser de fome, o Estado cresceu aumentando a prestação de serviços aos cidadãos, foi criado o Serviço Nacional de Saúde, o ensino universitário engordou imenso (como agora tão expressivamente se diz do Estado em geral), chegou a situação ao ponto de serem legalizados os sindicatos e admitidas as suas reivindicações.
Sabemos agora o nome certo para esse desagradável conjunto de fenómenos: despesismo. E sabemos também, graças às sábias palavras que todos os dias a TV agora nos tem trazido, que a crise que sobre o País se abateu exige que acabemos com ele porque é preciso que nos sacrifiquemos. Todos. Por agora, os que tendo sido sempre os sacrificados não irão estranhar que o sejam também agora, estão habituados. Quanto aos outros, depois se verá.
É assim que, finalmente, se entrevê o momento em que sejam retirados aos pobretanas os privilégios, os verdadeiros luxos, que Abril veio dar a essa gente.
Corte-se os subsídios de desemprego. Reduza-se o valor real dos salários, se não o seu valor nominal. Confisque-se o subsídio de Natal. Deixe-se aviltar o SNS. Aumente-se o IVA, imposto igual para ricos e pobres, isto é, ceguinho de todo. Liberalize-se o estratagema empresarial de despedir sob invocação da crise e sem pagar salários em dívida. Não se incomode a banca obrigando-a, coitada, a pagar horas extraordinárias.
Em resumo: liquide-se, graças à crise, o que resta das verdadeiras subversões que Abril trouxe. Retalhe-se o Estado para entregar os mais suculentos nacos ao sector privado e reduzir o que ficar à inoperância. Que não seja esquecida a entrega de boa parte da Educação a quem saiba educar santamente, que isso da laicidade no ensino é coisa de jacobinos.
Tudo isto e muito mais será feito ao abrigo da crise. Alguém um dia destes disse na TV que ela, a crise, também pode ser uma oportunidade.
Santas e sábias palavras. Felizmente parece estar em curso, enfim, o seu aproveitamento.
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