Lurdes Ferreira
Francisco é diabético, cardíaco e incontinente. Há uma dezena de dias, o filho, em situação de grande carência económica, entregou-o sob promessa de regressar com os documentos do pai, necessários para tratar da sua entrada num lar da Segurança Social. Nunca mais voltou.
Há dois dias, uma mulher apareceu a pedir ajuda. Tem um rendimento social de inserção (RSI) de 350 euros, mas paga 250 euros de renda, sem contar com a água, luz e gás, além de uma filha no ensino superior. Há três meses que não paga as contas. Ontem de manhã, uma jovem bateu à porta a pedir de comer. Perdeu o RSI, vive num quarto.
A porta a que bateram é a da Caritas Diocesana de Setúbal e do Centro Social de S. Francisco, através do qual cerca de 1400 pessoas recebem actualmente cuidados, entre idosos, crianças, sem abrigo e doentes com HIV. O número de "pessoas que pedem o básico para poderem viver alastra" e já não são só situações de carência económica, mas também de saúde mental, relata Isabel Monteiro, dirigente da instituição.
Tal como Eugénio Fonseca, presidente da Caritas portuguesa, também Isabel Monteiro mostra grande apreensão pelo pacote de medidas de austeridade anunciado ontem. "Vai ser muito complicado para as pessoas manterem um mínimo de dignidade, sobretudo para quem vive em habitações sociais ou degradadas", acrescenta.
Setúbal viveu uma aguda crise económica na década de 1980, mas esta não se compara. "Esta é uma crise generalizada que está a deitar abaixo a classe média e os pobres não têm onde se agarrar. Nos anos 1980, ainda havia perspectiva de emprego, agora não há. Ninguém quer empregar ninguém". Quanto ao emprego existente, "é tão desprovido de segurança" que as próprias pessoas desistem, explica Isabel Monteiro.
A própria instituição pode estar em risco de ruptura para garantir cuidados aos casos não abrangidos pela Segurança Social.
Eugénio Fonseca alerta para a "injustiça" das novas medidas que "vão deixar muitas famílias sem poder satisfazer as necessidades básicas de alimentação, habitação, saúde e educação". E acrescenta: "são os que não geraram a crise que a vão pagar". Além disso, estas medidas vão fazer com que o desemprego seja "um flagelo que nos vai acompanhar nos próximos anos".
Eugénio Fonseca mostra-se sobretudo contra o aumento do IVA, por tornarem iguais os preços para quem tem baixos e altos rendimentos, e contra o agravamento das taxas de IRS, por implicar uma efectiva descida salarial. Receia também que o corte nas receitas das autarquias agrave a redução da resposta social do Estado.
Com uma "classe média muito atingida", o país caminha para "perpetuar a realidade de gente que recebe salários, mas que são baixos salários", alerta. O responsável lamenta que as respostas à crise económica e financeira "afectem sempre a classe média e os mais pobres" e alerta que o efeito esperado pode ser o indesejado: o país até pode segurar as suas finanças públicas mas perde dinâmica para reanimar a actividade económica.
Também Isabel Jonet, presidente do Banco Alimentar (BA), criticou o "cego" aumento de impostos decidido que, diz, vai atingir em particular as famílias mais carenciadas. "Infelizmente, ao optar por este aumento de impostos, que é cego e atinge todas as pessoas horizontalmente, as famílias carenciadas vão sentir ainda mais na pele a crise, nomeadamente as desempregadas, que sempre que consumirem vão ter um acréscimo dos preços que terão de pagar", conclui citada pela Lusa.
http://publico.pt/Sociedade/quem-nao-gerou-a-crise-e-quem-a-vai-pagar_1437186
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