À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.

03/11/2011

Rapa e tira

Anabela Fino

De cada vez que um membro do Governo ou os seus patrões da dona Europa ditam uma sentença – não sei se já repararam que suas senhorias não falam, peroram – lembro-me do jogo do rapa. Para quem já se esqueceu ou nunca teve oportunidade de aprender como se entretinham as crianças quando não havia televisão nem Internet (ou como ainda hoje se entretém quem insiste em viver para além e apesar de todas as novidades tecnológicas), para esses, repito, informo que o rapa se joga com um pequeno pião de quatro faces em que cada uma tem inscrita uma das seguintes letras: R (Rapa), T (tira), D (Deixa), P (Põe). Não há limite para o número de jogadores, mas cada um tem de estar munido de igual número de «ofertas», cujas são decididas previamente (rebuçados, feijões, botões, etc.). O jogo começa com cada jogador a colocar no centro da mesa (ou no chão, desde que liso, que estes jogos tradicionais não são de esquisitices) uma «oferta», após o que cada um tenta a sorte fazendo girar o pião. A sorte é ditada pela letra que ficar exposta: R dá direito a «limpar» a mesa; T, a tirar uma «oferta»; P, a pôr mais uma «oferta» na mesa; e D, a não ganhar nem perder nada. Ganha o jogo quem reunir mais «ofertas».
Pois é deste jogo que eu me lembro, imagine-se, ao ouvir os governantes de aquém e além fronteiras. Com a particularidade de desconfiar que o pião deles está viciado e só tem Rapa e Tira. Sempre que abrem a boca, zaz, Rapa e Tira: nos transportes, na Saúde, nos salários, nas leis laborais, na habitação, no consumo... Rapa e Tira, Rapa e Tira, Rapa e Tira...
A fúria de rapina dos novos senhores da velha política é de tal ordem que já nem têm pudor, para tentar atingir os seus objectivos, de tecer comparações que os metem a ridículo, como ainda há dias fez o ministro Relvas ao invocar, como justificação para o corte dos subsídios de Natal e de férias e a preparar o terreno para a respectiva eliminação definitiva, que muitos países da UE só têm 12 vencimentos, citando a título de exemplo a Holanda, Noruega e Inglaterra... «Esqueceu-se» o ministro de comparar os salários mensais ou o rendimento anual dos trabalhadores portugueses com os daqueles países. Pormenores... O mesmo se pode dizer do chorrilho de loas tecidas em torno do anúncio da «ajuda» de 12 000 milhões de euros à banca. Fazem fila e acotovelam-se para nos tentar convencer que com a dita «ajuda», a pagar pelos contribuintes com língua de palmo, os clientes da banca ficam mais confiantes. Espolia-se as massas e garante-se aos espoliados que podem dormir descansados pois fica garantida a «segurança» do dinheiro que são forçados a pagar. Um espanto.
A coisa está a assumir proporções tais que por cá já se fala abertamente, o que está longe de ser acidental, das semelhanças desta política com as que caracterizaram o regime fascista de Salazar, o mesmo Salazar que deu nome à espátula de rapar os tachos.
Foi neste caldeirão que caiu como uma bomba o anúncio do refendo grego, fazendo tocar a rebate todas as campainhas do mundo capitalista. Perguntar ao povo o que o povo quer? Vá de retro, Satanás! Democracia mas nem tanto. Olha se lhe dá para virar a mesa!
A propósito, consta que terá sido com o jogo do Rapa que surgiu o ditado de «não gostar de perder... nem a feijões».

http://www.avante.pt/pt/1979/opiniao/117051/

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