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27/01/2009

A guerra e a crise económica contemporânea

Paulo Nakatani - Professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Brasil)

A maior parte da discussão sobre a guerra, iniciada após os ataques de 11 de setembro ao World Trade Center e ao Pentágono, concentra-se nos aspectos geo-políticos e estratégicos do império norte-americano, no aprofundamento da estratégia contra toda e qualquer oposição, identificando-as com o terrorismo e o tráfico de drogas, e sobre os aspectos políticos e éticos desta guerra.

Sob o ponto de vista econômico, as análises centram-se nos aspectos de curto prazo decorrentes das perdas das seguradoras, companhias aéreas e retração do turismo. Essas perdas, associadas ao incremento da insegurança e acentuação na retração da procura do consumidor norte-americano, tendem a acelerar a tendência recessiva desencadeada pelas crises do mercado financeiro, antes de 11 de setembro. Todavia, alguns analistas tendem a defender o papel dinamizador da procura bélica como um fator a contrarrestar, pelo menos parcialmente a crise atual.

Outra interpretação, que poderíamos considerar mais estrutural, coloca a guerra como uma “necessidade” do próprio desenvolvimento capitalista. Renato Pompeu (Caros Amigos, no.55, out/2001), por exemplo, afirma que: “as empresas brigam para levar cada vez menos tempo de trabalho vivo, que é o que cria a mais-valia, até que chega um ponto em que isso tende quase a zero, daí o que você pode fazer? Você acaba com o capitalismo ou, se quer manter o capitalismo, tem que destruir tudo, destruir as mercadorias em geral para aumentar o tempo de trabalho necessário para produzir. Logo depois da Segunda Guerra Mundial, houve uma reconstrução fantástica da Europa. Quando teve a guerra do Kosovo, a revista The Economist , britânica, se queixou — se queixou, não, deu vazão à queixa, não vamos acusá-la disso —, dizendo que os empresários ficaram decepcionados porque a destruição foi muito pequena, não ia ter muitos investimentos ali. E não é crueldade humana, é uma coisa quase automática, vai acontecendo sem você perceber...” Para ele, já estamos na terceira guerra mundial, que se iniciou desde a guerra de Kosovo, e ela é necessária para destruir o capital acumulado e permitir outro ciclo de acumulação, como ocorreu nas guerras napoleônicas, na 1ª e 2ª Guerras mundiais.

Neste artigo, discutimos estes pontos de vista e defendemos a idéia de que a forma como esta guerra está se desenrolando, associada ao grau de desenvolvimento das forças produtivas e das relações capitalistas de produção, não deverá gerar condições semelhantes às criadas nas grandes guerras anteriores, para a reprodução ampliada do capital. Portanto, que não existem mais condições para um novo ciclo longo de expansão do capital.

1) A procura de guerra como procura efetiva.

As guerras convencionais, travadas até a segunda grande guerra mundial, tinham como característica a mobilização de enormes exércitos que exigiam alimentação, vestuário, transporte, combustíveis, armas, equipamentos e munições em grande volume, utilizadas extensivamente. As guerras atuais são mais localizadas, de preferência nas regiões econômica e politicamente mais atrasadas, evitando os centros industrialmente mais desenvolvidos do mundo. Ao mesmo tempo, os grandes exércitos das nações desenvolvidas foram substituídos por forças relativamente pequenas, altamente especializadas e armadas com sofisticados equipamentos. Neste sentido a guerra reproduz o processo industrial de substituição do trabalho vivo pelo trabalho morto.

No campo inimigo, mais atrasado, a mobilização de grande contingente humano para a guerra não amplia, igualmente, a procura efetiva nos ramos produtores de bens de consumo, alimentação e vestuário devido à precariedade em que já viviam os combatentes. Mas expande a procura por armas e equipamentos também sofisticados, ampliando enormemente o mercado negro e o contrabando de equipamentos bélicos. O que só beneficia o pequeno grupo de traficantes dos enormes estoques de armas, munições e equipamentos acumulados pela indústria bélica.

Ao contrário das grandes guerras mundiais que opunham nações com níveis de desenvolvimento industrial relativamente próximos, a maior parte das guerras da última metade do século passado (guerra da Indochina, guerra da Coréia, guerra do Vietnã, guerra do Golfo, guerra de Kosovo), opõe uma grande potência, normalmente os Estados Unidos, contra um país muito mais atrasado. Este meio século de guerras localizadas contínuas estabeleceu um nível de procura efetiva, cujo aumento decorrente de mais um conflito aberto será pouco significativo para o aumento da procura global. Assim, a idéia de que a guerra amplia a procura efetiva e dinamiza a economia só poderia ser defensável para o curto prazo e para ramos de atividade que não são dinâmicos, exceto para o caso da industria bélica. Neste sentido, os efeitos depressivos de curto prazo podem ser muito mais importantes do que os efeitos expansivos.

2) A guerra como substituto da crise (a destruição de capital e de força de trabalho).

Renato Pompeu coloca corretamente o papel das guerras na destruição do capital, constante e variável, para a revitalização do processo de acumulação, mas não estamos de acordo com a idéia implícita de que esta guerra criará as condições para outro longo ciclo de acumulação. Durante as crises cíclicas do capitalismo parte do capital fixo é desvalorizado e sucateado, ao mesmo tempo em que parte da força de trabalho é expulsa do mercado indo constituir a parcela estagnada do exército industrial de reserva, ou mesmo indo ampliar o lumpen-proletariado. As grandes guerras mundiais do século passado cumpriram esse papel de forma brutal e intensa na Europa e Japão, estimulando um novo ciclo de acumulação. Todavia, a cada ciclo de expansão e contração, a estrutura produtiva tende a recompor-se em um grau mais elevado de desenvolvimento das forças produtivas e com novos determinantes nas relações capitalistas de produção.

Além disso, mesmo aceitando a hipótese de que a guerra atual seja já a terceira grande guerra, que irá envolver todas as nações do planeta, e que chegue a destruir grandes parcelas do capital fixo já instalado, a reconstituição do capital fixo deverá ocorrer em novas bases tecnológicas, cujo ciclo industrial será muito mais curto e, por maior que seja a taxa de exploração do trabalho, não reverterá significativamente a taxa de lucro.

Durante as grandes guerras mundiais, enormes contingentes, milhões de trabalhadores foram convertidos em soldados. Para tanto, parte significativa da força de trabalho era deslocada do processo de produção e transferida para o front . Essa força de trabalho era substituída pelo exército industrial de reserva e pela incorporação de mulheres, crianças e idosos ao mercado de trabalho. O grau de desenvolvimento das forças produtivas exigia que cada unidade de força de trabalho deslocada para a guerra fosse substituída por outra equivalente. Os milhões de mortos naquelas guerras resolveram o problema do excedente de força de trabalho no mercado dos países capitalistas desenvolvidos, naquele momento.

Mas, o atual grau de desenvolvimento das forças produtivas não só já estava expulsando trabalhadores do processo produtivo como não exige mais que eles tornem-se soldados nesta guerra. Mesmo que os Estados Unidos massacrem as populações dos países subdesenvolvidos que se envolverem na guerra, o excesso de força de trabalho decorrente da contradição entre o grau de desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção continuará a pressionar a crise dos países desenvolvidos.

Neste sentido, a forma atual da guerra não deverá desempenhar o mesmo papel que desempenhou nas guerras mundiais anteriores. Não destruirá capital nem força de trabalho em escala suficiente para um longo ciclo de reconstrução capitalista. Além disso, como vimos, caso isso ocorra, será em um contexto de contradições sociais muito mais graves.

3) A guerra como impulso ao desenvolvimento científico e tecnológico.

As guerras mundiais do século passado e a guerra fria, decorrente da segunda grande guerra, propiciaram um enorme impulso ao desenvolvimento científico-tecnológico e à produção capitalista. Elas estimularam a pesquisa e à criação de novos produtos que ampliaram enormemente o campo da acumulação capitalista. A pesquisa militar e espacial, financiada principalmente pelos orçamentos dos Estados dos países desenvolvidos marca toda a gama de produtos e serviços disponíveis hoje nos mercados capitalistas de consumo.

Assim, poder-se-ia imaginar que uma nova grande guerra, no contexto da chamada terceira revolução industrial e da “nova economia”, poderia produzir outro grande impulso ao desenvolvimento científico tecnológico capaz de gerar novos produtos e serviços. É indubitável que uma nova grande guerra realmente produza esse impulso. Mas, a questão que colocamos é até que ponto nós estamos realmente sob o signo de uma nova revolução industrial. Não estaríamos apenas aprofundando e desenvolvendo conhecimentos, produtos e serviços sobre a mesma base anterior?

O principal produto da segunda revolução industrial, o automóvel, dinamizou os mercados capitalistas durante praticamente todo o século passado e continua, ainda, como um dos principais produtos desse mercado. Mas ele funciona, ainda, baseado no motor de combustão interna, desenvolvido junto com a base energética eletro-magnética da segunda revolução industrial. Um dos pilares dessa estrutura industrial, o petróleo, tem sido considerado o pivô de várias guerras e também da guerra contra o Afeganistão.

Mas, o desenvolvimento científico e tecnológico, no contexto da mundialização do capital tende a concentrar-se cada vez mais nos países desenvolvidos. Os países subdesenvolvidos sofrem um processo de desestruturação produtiva e uma tendência a reprimarização de suas economias, com um empobrecimento de parcelas cada vez maiores de suas populações. Desta forma, um novo impulso ao desenvolvimento científico e tecnológico dentro do atual regime de acumulação poderá ser ainda mais excludente.

Como todos sabemos, o desenvolvimento científico-tecnológico constitui-se na forma por excelência de substituição do trabalho vivo pelo trabalho morto no processo de produção capitalista. Subordinado ao capital, ele produziu um padrão de acumulação e consumo incompatível com as necessidades da maior parte da população mundial. Como já está amplamente divulgado apenas 20% da população do planeta é responsável por 80% do consumo mundial.

4) Considerações finais.

Se as grandes guerras anteriores exerceram um papel importante para a destruição de capital e força de trabalho que revitalizaram o processo de acumulação, uma nova grande guerra não deverá desempenhar papel equivalente.

O contexto mundial das guerras anteriores era o da redivisão do mundo, da conquista de mercados e do aprovisionamento de matérias-primas, fundamentais para a acumulação de capital na época. Hoje, não se coloca mais a questão da redivisão do mundo nem a conquista de mercados tem o mesmo peso. O petróleo como fonte energética ainda é a exceção.

A hegemonia mundial obtida pelos Estados Unidos após a segunda guerra mundial, contestada parcialmente pelo Japão e Europa e reafirmada no final do século passado encontra-se novamente em xeque. A resposta norte-americana a essa crise de hegemonia é a guerra, na qual eles ameaçam envolver todas as forças de oposição e contestação ao modo de produção capitalista. Cabe a estas forças encontrar uma via para a superação do capitalismo, para a construção do socialismo, e para evitar o caos que provavelmente poderá se espalhar pelo mundo caso esta nova guerra se configure efetivamente em uma terceira grande guerra mundial.

In Resistir.info

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