Michael R. Krätke
A táctica de Merkel & companhia conseguiu até ao momento um único resultado: que os títulos de tesouro dos estados dos países da zona euro se converteram hoje praticamente sem excepção em títulos especulativos. Os especuladores profissionais enriquecem e continuam a enriquecer graças à prolongada crise da dívida que lhes enche os bolsos.
Passadas as promessas da Última Cimeira da União Europeia os mercados financeiros permanecem indiferentes. E cai o consenso de Bruxelas, como mostra o distanciamento da Dinamarca.
Os índices das bolsas da primeira metade desta semana constituem um claro indício: a crise europeia prossegue o seu curso. Não será resolvida nem a curto nem a médio prazo com as decisões da Cimeira da União Europeia de 8 de Março próximo. Voltaremos a encontrar-nos o mais tardar em Março, e provavelmente até muito antes. Oficialmente, toda a Europa acredita que a crise é uma consequência do endividamento dos estados e que se pode sair dela na base da poupança se não tiver de se cavar muito fundo na gordura do Estado social nos países europeus. Mas até para os maiores analfabetos em economia que integram as nossas elites deveria ser evidente que nos encaminhamos para uma depressão ainda mais ampla e mais profunda.
Qualquer economista sabe que os meios previstos para o Fundo Europeu de Estabilidade Financeira (FEEF) e para o Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEDE) não são suficientes para a ajuda a países como a Espanha, a Itália ou a França. Qualquer um sabe que a data proposta pelo MEE, Junho de 2012, não será suficiente. Para não ser o Banco Central Europeu (BCE) a comprar mais títulos de crédito europeus foi encontrado um curioso atalho através do FMI: um crédito de 200 mil milhões de euros dos países da União Europeia ao Fundo Monetário Internacional para que os estados arruinados da Europa possam receber ajuda. Que os Estados Unidos e outros países membros do FMI não iriam colaborar era claro desde o início.
Nenhum Plano Marshall
Nenhuma destas coisas corresponde ao verdadeiro interesse da Alemanha, nenhuma destas coisas corresponde aos interesses da Europa. Nem a política de austeridade imposta aos estados periféricos da União Europeia que irá acentuar as desigualdades estruturais da UE, nem a vertigem com que se ataca o endividamento estatal através de políticas que se pretende que sirvam de exemplo. Também os alemães terão de pagar amargamente pelo curso dos acontecimentos que agora têm lugar. Quanto mais Merkel se imponha, maior será o tamanho da factura final. Da regulação dos mercados financeiros, de limitações aos bancos para a criação de moeda, estamos tão longe como há dois anos. Uma união monetária e fiscal europeia teria aqui todo o sentido: regras de jogo comuns para o mercado comum de capitais e divisas, impostos comuns e concebidos de forma igual para todos, planificação financeira comum, um mercado comum para os empréstimos governamentais na Europa. Tudo isto brilhou pela ausência. E, hoje como ontem, não temos nenhuma política económica comum nem sequer para uma parte do continente, da mesma forma que também não temos o urgentemente necessário Plano Marshall para alguns dos países do sul da Europa.
O veto do Machtpolitiker David Cameron – um partidário da política de austeridade no seu próprio país não menos fanático do que Merkel na Alemanha – proporcionou o esprit de l’escalier adequado à ocasião (1). Contra os tectos de dívida (Schuldenbremsen), as multas disciplinares para os países que incorram em défice, os juros excessivos e outros artigos de fé neoconservadores Cameron não teve nada a objectar. Para ele tudo se resumia a proteger a City of London de qualquer tipo de regulação proveniente do continente. Após décadas de desmantelamento industrial, aos britânicos só resta – para além das suas excelentes universidades, que estão a arruinar à força de as obrigar a cortes orçamentais – a sua chamada “indústria financeira”. Consequentemente, ninguém se atreve a tocar na City. Tanto Merkel como Cameron jogam com os sentimentos nacionalistas dos seus irritados cidadãos (Wutbürger). Para além disso, Cameron utiliza o sentimento eurocéptico prevalecente nas ilhas.
À mercê dos especuladores
À custa dos intermináveis atrasos e bloqueios de cada solução necessária e que fizesse sentido, Merkel & companhia conseguiram converter um problema marginal e não demasiado complicado de gerir num problema de toda a União Europeia. A táctica de ganhar tempo deitando borda fora consecutivamente todas estas soluções conseguiu até ao momento um único resultado, a saber: que os títulos de tesouro dos estados dos países da zona euro – que em tempos constituíam abrigos seguros – se converteram hoje praticamente sem excepção em títulos especulativos. Os especuladores profissionais enriquecem e continuam a enriquecer graças à prolongada crise da dívida que lhes enche os bolsos.
E os senhores dos mercados financeiros continuam completamente imperturbáveis tanto perante o espectáculo da flamante nova disciplina orçamental como da perspectiva de novos limites ao endividamento. Os juros e os lucros dos empréstimos europeus sobem alegremente. Quando nos próximos três ou quatro meses faltarem as centenas de milhares de milhões de euros necessários para refinanciar os empréstimos do estado na Itália, na Espanha e na França, nenhum dogma orçamental nem nenhum tecto de dívida servirão de ajuda. As agências de notação do crédito, a quem devemos de facto esta obra de arte, fazem avançar vigorosamente a crise através do anúncio de que irão colocar todos os estados da zona euro, e talvez mesmo toda a UE, sob observação.
Mais de metade dos alemães treme perante a ameaça da inflação, tal como treme também o próprio Bundesbank (banco central alemão). Embora ninguém tenha tirado tantas vantagens do euro e, paradoxalmente, da crise do euro como os alemães, estes vêm-se a si mesmos como as vítimas e os principais pagadores. A coligação entre conservadores e liberais em Berlim joga com os ressentimentos nacionais e ressuscitou – pela primeira vez desde 1990 – a germanofobia em toda e Europa. Os alemães e toda a Europa pagam um elevado preço pela mistura, tipicamente alemã, de política partidária de vistas curtas e de dogmatismo político.
19/12/11
1- L’esprit de l’escalier (em francês: o engenho da escadaria) é uma expressão francesa que descreve o acto de pensar numa resposta engenhosa quando já passou a oportunidade para a dar. Este fenómeno surge geralmente acompanhado por uma sensação de pesar e arrependimento, uma “consciência intranquila”. A expressão foi cunhada por Denis Diderot no seu Paradoxe sur le Comédien. utiliza-se a frase quando nos ocorre demasiado tarde um insulto ou uma réplica engenhosa, quando estamos já a descer os degraus da tribuna. Data da época em que a plavra esprit, que significa espiritu omente, era correntemente utilizada para designar engenho. (Wikipedia)
Michael R. Krätke, membro do Conselho Editorial de SINPERMISO, é professor de política económica e direito fiscal na Universidade de Amsterdam, investigador associado ao Instituto Internacional de Historia Social da mesma cidade e catedrático de economia política e director do Instituto de Estudos Superiores da Universidade de Lancaster no Reino Unido.
Os índices das bolsas da primeira metade desta semana constituem um claro indício: a crise europeia prossegue o seu curso. Não será resolvida nem a curto nem a médio prazo com as decisões da Cimeira da União Europeia de 8 de Março próximo. Voltaremos a encontrar-nos o mais tardar em Março, e provavelmente até muito antes. Oficialmente, toda a Europa acredita que a crise é uma consequência do endividamento dos estados e que se pode sair dela na base da poupança se não tiver de se cavar muito fundo na gordura do Estado social nos países europeus. Mas até para os maiores analfabetos em economia que integram as nossas elites deveria ser evidente que nos encaminhamos para uma depressão ainda mais ampla e mais profunda.
Qualquer economista sabe que os meios previstos para o Fundo Europeu de Estabilidade Financeira (FEEF) e para o Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEDE) não são suficientes para a ajuda a países como a Espanha, a Itália ou a França. Qualquer um sabe que a data proposta pelo MEE, Junho de 2012, não será suficiente. Para não ser o Banco Central Europeu (BCE) a comprar mais títulos de crédito europeus foi encontrado um curioso atalho através do FMI: um crédito de 200 mil milhões de euros dos países da União Europeia ao Fundo Monetário Internacional para que os estados arruinados da Europa possam receber ajuda. Que os Estados Unidos e outros países membros do FMI não iriam colaborar era claro desde o início.
Nenhum Plano Marshall
Nenhuma destas coisas corresponde ao verdadeiro interesse da Alemanha, nenhuma destas coisas corresponde aos interesses da Europa. Nem a política de austeridade imposta aos estados periféricos da União Europeia que irá acentuar as desigualdades estruturais da UE, nem a vertigem com que se ataca o endividamento estatal através de políticas que se pretende que sirvam de exemplo. Também os alemães terão de pagar amargamente pelo curso dos acontecimentos que agora têm lugar. Quanto mais Merkel se imponha, maior será o tamanho da factura final. Da regulação dos mercados financeiros, de limitações aos bancos para a criação de moeda, estamos tão longe como há dois anos. Uma união monetária e fiscal europeia teria aqui todo o sentido: regras de jogo comuns para o mercado comum de capitais e divisas, impostos comuns e concebidos de forma igual para todos, planificação financeira comum, um mercado comum para os empréstimos governamentais na Europa. Tudo isto brilhou pela ausência. E, hoje como ontem, não temos nenhuma política económica comum nem sequer para uma parte do continente, da mesma forma que também não temos o urgentemente necessário Plano Marshall para alguns dos países do sul da Europa.
O veto do Machtpolitiker David Cameron – um partidário da política de austeridade no seu próprio país não menos fanático do que Merkel na Alemanha – proporcionou o esprit de l’escalier adequado à ocasião (1). Contra os tectos de dívida (Schuldenbremsen), as multas disciplinares para os países que incorram em défice, os juros excessivos e outros artigos de fé neoconservadores Cameron não teve nada a objectar. Para ele tudo se resumia a proteger a City of London de qualquer tipo de regulação proveniente do continente. Após décadas de desmantelamento industrial, aos britânicos só resta – para além das suas excelentes universidades, que estão a arruinar à força de as obrigar a cortes orçamentais – a sua chamada “indústria financeira”. Consequentemente, ninguém se atreve a tocar na City. Tanto Merkel como Cameron jogam com os sentimentos nacionalistas dos seus irritados cidadãos (Wutbürger). Para além disso, Cameron utiliza o sentimento eurocéptico prevalecente nas ilhas.
À mercê dos especuladores
À custa dos intermináveis atrasos e bloqueios de cada solução necessária e que fizesse sentido, Merkel & companhia conseguiram converter um problema marginal e não demasiado complicado de gerir num problema de toda a União Europeia. A táctica de ganhar tempo deitando borda fora consecutivamente todas estas soluções conseguiu até ao momento um único resultado, a saber: que os títulos de tesouro dos estados dos países da zona euro – que em tempos constituíam abrigos seguros – se converteram hoje praticamente sem excepção em títulos especulativos. Os especuladores profissionais enriquecem e continuam a enriquecer graças à prolongada crise da dívida que lhes enche os bolsos.
E os senhores dos mercados financeiros continuam completamente imperturbáveis tanto perante o espectáculo da flamante nova disciplina orçamental como da perspectiva de novos limites ao endividamento. Os juros e os lucros dos empréstimos europeus sobem alegremente. Quando nos próximos três ou quatro meses faltarem as centenas de milhares de milhões de euros necessários para refinanciar os empréstimos do estado na Itália, na Espanha e na França, nenhum dogma orçamental nem nenhum tecto de dívida servirão de ajuda. As agências de notação do crédito, a quem devemos de facto esta obra de arte, fazem avançar vigorosamente a crise através do anúncio de que irão colocar todos os estados da zona euro, e talvez mesmo toda a UE, sob observação.
Mais de metade dos alemães treme perante a ameaça da inflação, tal como treme também o próprio Bundesbank (banco central alemão). Embora ninguém tenha tirado tantas vantagens do euro e, paradoxalmente, da crise do euro como os alemães, estes vêm-se a si mesmos como as vítimas e os principais pagadores. A coligação entre conservadores e liberais em Berlim joga com os ressentimentos nacionais e ressuscitou – pela primeira vez desde 1990 – a germanofobia em toda e Europa. Os alemães e toda a Europa pagam um elevado preço pela mistura, tipicamente alemã, de política partidária de vistas curtas e de dogmatismo político.
19/12/11
1- L’esprit de l’escalier (em francês: o engenho da escadaria) é uma expressão francesa que descreve o acto de pensar numa resposta engenhosa quando já passou a oportunidade para a dar. Este fenómeno surge geralmente acompanhado por uma sensação de pesar e arrependimento, uma “consciência intranquila”. A expressão foi cunhada por Denis Diderot no seu Paradoxe sur le Comédien. utiliza-se a frase quando nos ocorre demasiado tarde um insulto ou uma réplica engenhosa, quando estamos já a descer os degraus da tribuna. Data da época em que a plavra esprit, que significa espiritu omente, era correntemente utilizada para designar engenho. (Wikipedia)
Michael R. Krätke, membro do Conselho Editorial de SINPERMISO, é professor de política económica e direito fiscal na Universidade de Amsterdam, investigador associado ao Instituto Internacional de Historia Social da mesma cidade e catedrático de economia política e director do Instituto de Estudos Superiores da Universidade de Lancaster no Reino Unido.
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