À procura de textos e pretextos, e dos seus contextos.

28/05/2009

O senhor patrão

Correia da Fonseca

No breve período de alguns dias, o senhor engenheiro Belmiro surgiu nos ecrãs dos nossos televisores a derramar sentenças. Tanto quanto julgo saber, o senhor engenheiro não é titular de nenhum cargo de representação patronal ou outra que explique a atenção que as estações de TV lhe dispensam: é apenas ele, Belmiro, não apenas engenheiro, o que seria pouco porque engenheiros há muitos, mas também e sobretudo detentor de uma das maiores fortunas do País e, ao que consta, do mundo. Notícias relativamente recentes informaram-nos de que essa fortuna sofreu nos finais de 2008 um significativo desgaste em consequência do crash financeiro que abalou o mundo capitalista mas, pelos vistos, dela subsistiu o bastante não só para que o nome de Belmiro se tenha mantido em lugar interessante no ranking dos «mais ricos» mas também para que a sua impertinência, para não falar de má-educação, se tenha mantido intacta, se não agravada. Quanto às raízes da sua fortuna, condescendo em dizer que não tenho nada com isso, o que aliás em rigor pode não ser bem verdade, mas suponho que não foi exactamente conseguida pela renúncia a lavar os pés ou, para me aproximar de uma formulação adoptada pelo próprio senhor engenheiro, a ter «os pés na água», imagem não excessivamente elegante que Belmiro usou para se referir ao descanso ao sábado de alguns trabalhadores da Auto Europa.
O certo é que os media continuam a prestar-lhe sinais de vassalagem e que ele aproveita essa submissão para, pelo menos quando o talento o ajuda, resumir em poucas palavras o desprezo que vota aos que trabalham sem conseguirem fazer fortunas e também, quando as circunstâncias são propícias, a instituições e/ou funções que de perto ou de longe estejam ligadas a quanto lhe cheire à democracia ainda que imperfeita que os portugueses conseguiram por sinal sem a ajuda dele, Belmiro. Esta última alusão salta-me para as pontas dos dedos que martelam o computador porque não esqueci o acto de ostensiva insolência com que há anos Belmiro, engenheiro e ricaço, obrigou deputados da Assembleia da República a alterarem a hora em que a poderosa criatura seria recebida. Espero que tenha ficado contente com a proeza: os que no fundo de si próprios se sabem pequeninos apesar de todo o fausto que conseguem comprar alegram-se muito, coitados, com estas humilhações impostas a outros.

Belmiro e o camelo bíblico

Vem isto a propósito (e muito mais viria) de duas provocações recentemente praticadas pelo senhor engenheiro perante as câmaras e os microfones da TV. Numa delas, Belmiro teve o péssimo gosto de chasquear acerca das dificuldades que os trabalhadores portugueses enfrentam, propondo duas soluções a adoptar em empresas em alegada crise: ou o despedimento de metade dos seus trabalhadores ou a redução para metade dos salários de todos eles. Bem se sabe que o senhor engenheiro, tal como a generalidade dos que lhe são próximos, subsistiria perfeitamente com metade das remunerações que recebe, ou mesmo com um décimo delas, mas teria convido que Belmiro tivesse distinguido entre os salários de gente tão fina, que é outra coisa, e os da numerosa gentalha que trabalha duramente e quase sempre a prazo curto tendo de governar-se com o que o senhor engenheiro manda pagar-lhe. A segunda das referidas provocações ocorreu quando lhe foi pedida opinião sobre a polémica em curso na Auto Europa em torno do trabalho aos sábados e das remunerações por ele pagas. Saiu-se então Belmiro com aquela ironia de gosto péssimo acerca dos «pés na água», isto é, Sua Excelência virou insolência e quis insinuar que o que os trabalhadores queriam era ir para a praia aos sábados. Não sei em que água mete Belmiro os pés, nem quando, nem em que água lavam os pés os seus familiares e colaboradores de topo, mas uma vozinha me segreda ser frequente que não os lavem em águas portuguesas nem precisem dos sábados para se entregarem a essa saudável higiene. O que sei, isso sim, é que fica pessimamente a um patrão ricaço a tentativa de gracejar contra a defesa possível que os trabalhadores fazem dos seus direitos. E também que Belmiro deveria lembrar-se, como bom cristão que espero que seja, que com a sua fortuna inscrita no tal ranking mundial vai ser mais fácil a um camelo passar pelo fundo de uma agulha que a ele, Belmiro, entrar no Reino dos Céus. Pelo que seria adequado e conveniente que começasse a praticar algumas virtudes, designadamente a do respeito pelos outros.
Avante - 28.05.09

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